Como podemos promover uma educação intercultural?

01 novembro 2024
O acesso à literatura, em sua diversidade, é um caminho para a promoção da educação na perspectiva da interculturalidade (imagem: iStock).

No Brasil, um dos países com maior diversidade linguística e cultural, é necessário questionar as relações de poder entre os grupos socioculturais constituintes da cultura. Uma maneira de colocar isso em prática é promovendo uma educação na perspectiva da interculturalidade, através de uma seleção literária adequada.

O potencial formativo da literatura

A base da construção do saber no ambiente escolar formal é o currículo. Por trás dele, existe uma seleção e uma intenção. Ele reflete as relações de poder, negociação e conflito.

Considerando que a seleção feita no currículo refletirá o tipo de formação proporcionada ao estudante, podemos trazer à tona, a ideia da construção do imaginário coletivo, concretizada a partir da leitura do mundo.

Dentre os recursos para a construção do imaginário, a educação formal deve promover o acesso à literatura, sendo ela um direito humano universal, conforme Antonio Candido, já que a imaginação e a fabulação são inerentes ao ser humano, e a literatura promove o desenvolvimento humano, emocional e social.

A literatura cumpre diferentes papéis ao longo da formação do estudante, desde a educação infantil até o ensino médio. No decorrer das etapas da educação formal, ela é responsável por ampliar o vocabulário; explorar novos conceitos; preparar para a alfabetização formal; expor o estudante a uma diversidade de experiências humanas, culturais e históricas; promover consciência social e senso de justiça; formar indivíduos críticos, criativos, empáticos e engajados.

Tendo em vista todo o potencial formativo da literatura, o educador tem o poder em suas mãos, ao selecionar obras para trabalhar com os estudantes. O olhar sensível e crítico, atento às relações de poder existentes na sociedade, promove uma educação intercultural.

Existe diversidade linguística no Brasil?

Ao longo da minha atuação, lecionando inglês como língua adicional, sempre foi comum que, em algum momento do percurso formativo dos estudantes, surgisse o momento de eles questionarem se estavam aprendendo inglês norte-americano ou britânico. Diante disso, meu posicionamento se colocava no sentido de provocar a reflexão sobre a existência de uma diversidade de países cuja língua ou uma das línguas oficiais é o inglês, assim como a pluralidade de sotaques do idioma em questão. Com isso, já emendava em uma visão crítica sobre a variedade do português brasileiro.

A prática e a experiência em sala de aula elucidam uma visão do Brasil enquanto país monolíngue, ou seja, onde se fala um único idioma, demonstrando assim, o apagamento da diversidade linguística do território brasileiro, fato historicamente construído ao longo dos séculos de formação do país, como informa Luchesi:

  • Estima-se que mais de mil línguas indígenas eram faladas no território brasileiro no início do século XVI (Rodrigues, 1993), e mais de duzentas línguas africanas foram introduzidas no país pelo tráfico negreiro, entre 1550 e 1850 (Petter, 2006). Assim, durante quase dois séculos, o português foi apenas uma das muitas línguas faladas no território brasileiro. Porém, hoje cerca de 98% da população têm o português como língua materna, conquanto o Brasil seja também, e paradoxalmente, um dos países de maior diversidade linguística do planeta, com centenas de línguas indígenas pertencentes a cinco famílias tipologicamente diferenciadas (embora a maioria esteja em vias de desaparecimento) e dezenas de língua de imigração. Como toda essa diversidade linguística se concentra em apenas dois por cento de sua população (Lucchesi, 2015), justifica-se a definição de Mattos e Silva de “multilinguismo localizado”(2017, p. 349).

Em um dos países com maior diversidade linguística e cultural, é necessário questionar diariamente as relações de poder entre os grupos socioculturais constituintes da  cultura brasileira. Uma maneira de colocar isso em prática é promovendo uma educação na perspectiva da interculturalidade, pois ela reconhece o sentido e a identidade cultural de cada grupo social, e ao mesmo tempo, valoriza o potencial educativo dos conflitos.

O texto literário e a interculturalidade

O texto literário é o espaço onde se pode combinar elementos de diversas culturas e estabelecer entre elas uma relação dialógica, expandindo assim a visão de mundo do sujeito que está em contato com a leitura. Ela promove a percepção do outro enquanto sujeito, ajudando a desenvolver a empatia, a capacidade crítica e a compreensão do outro.

Nas diversas práticas sociais nas quais lidamos com a leitura literária, existem modos diversos de se ler, dependendo da intencionalidade. O acesso à literatura pode ser colocado em prática a partir de leitura colaborativa, mediação de leitura ou contação de história. Dentre as modalidades de leitura, a mediação é responsável por criar um espaço onde os leitores, especialmente aqueles com menos experiência ou interesse, possam interagir mais profundamente com o texto, já que o mediador atuará como um facilitador, ajudando a contextualizar a obra, instigando reflexões e promovendo discussões, de maneira a enriquecer a compreensão e o prazer da leitura.

Repensar a construção do imaginário

Tendo em vista que o acesso à literatura promove a ampliação do repertório linguístico e cultural, a partir da exposição a universos imaginários, personagens complexos e situações diversas, sugiro a leitura e discussão, entre educador e educando, de duas obras, são elas:  “Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis”, de Jarid Arraes; e “Nós: Uma Antologia de Literatura Indígena”, escrito por diversos autores.

Na primeira obra, a escritora Jarrid Arraes traz à tona o protagonismo de 15 mulheres negras na participação de eventos marcantes da história brasileira. Em formato de cordel, a autora resgata o papel de figuras históricas apagadas ao longo dos séculos de formação do nosso país.

Já o segundo título reúne dez contos escritos por autores indígenas, originários de diferentes nações. Dos mitos de origem a histórias de amor impossível, o leitor é levado a desfechos surpreendentes. Cada conto é acompanhado por um glossário e um texto informativo sobre a nação indígena de origem de cada autor.

A literatura é o lugar das possibilidades, é onde universos imaginários se concretizam. Nela, se constrói um tecido de narrativas, valorizando a polifonia na construção de discursos, solidificando assim um ponto de referência responsável por estruturar a memória coletiva de um grupo social.

Considerando que a memória é um fenômeno construído e palco de disputas, quando a literatura, em sua construção discursiva, relembra datas, festividades e personagens históricos, edifica-se lugares de memória, fundamentais para a construção de uma identidade sólida e para o desenvolvimento de indivíduos críticos.

Considerações finais

De maneira geral, podemos afirmar que o acesso à literatura, em sua diversidade, é um caminho para a promoção da educação na perspectiva da interculturalidade. A variedade de narrativas e de personagens contribui para a formação de indivíduos críticos e empáticos, e atua de maneira a construir um repertório cultural amplo. 


Bárbara Louise Paiva de Oliveira é professora de Língua Portuguesa, na rede municipal de São Paulo. É graduada e licenciada em Letras (Universidade de São Paulo – USP) e pós-graduada em Teorias do Bilinguismo (PUC MINAS). Participou do PIBID, entre os anos de 2018 e 2019, desenvolvendo um projeto de intervenção em uma escola pública de São Paulo, cujo tema era a compreensão dos cenários linguísticos e das práticas de letramento desenvolvidas por migrantes na cidade. Realizou intercâmbio voluntário em uma pré-escola, na cidade de Cape Town (Exchange do Bem) e participou do Projeto Aula Go, da Fundação SM, atuando como uma das educadoras a colaborar com o desenvolvimento de um projeto para uma escola no México, com foco na resolução de conflitos e na convivência pacífica.

 Referências

  • ARRAES, Jarid (2017). Heroínas Negras Brasileñas en 15 Cordeles. São Paulo: Pólen.
  • ARROYO, Miguel González (2011). Currículo, território em disputa (2. ed.). Petrópolis: Vozes.
  • CANDAU, Vera Maria (2000). Interculturalidade e educação escolar. In: CANDAU, V. M. (Org.). Reinventar a escola (3. Ed). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • CADEMATORI, Ligia (2012). O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica.
  • CANDIDO, Antonio (2011). O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos (5 ed.). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul / São Paulo: Duas Cidades.
  • LUCCHESI, Dante (2017). A periodização da história sociolinguística do Brasil. E.L.T.A., São Paulo, v.33, n.2, p. 347-382, maio/agosto.
  • NEGRO, Mauricio (org.) (2019). Nós: uma antologia de literatura indígena. São Paulo: Companhia das Letrinhas.
  • POLLAK, Michael (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: vol. 2, nº 3.