Ficar (bem) na escola. Percorrer com qualidade o ensino médio exige suportes a jovens que trabalham e estudam

02 agosto 2024
Muitos jovens de baixa renda enfrentam a necessidade de trabalhar enquanto estudam para ajudar a sustentar suas famílias ou para custear seus próprios gastos pessoais (imagem: iStock).

Proporcionar apoio financeiro, acadêmico e emocional reduz disparidades educacionais e promove oportunidades para jovens pobres. Isso contribui para uma sociedade mais justa.

No Brasil, a busca pela equidade na educação é um desafio contínuo, especialmente quando se trata dos jovens pobres que frequentam o ensino médio na escola pública. Em nossos diálogos de pesquisa com jovens estudantes populares, incluindo aqueles da Educação de Jovens e Adultos, temos ouvido que eles e elas se sentem sós para enfrentar os desafios de continuar na escola. Esses jovens vivem num mundo que gera muitas expectativas e poucas possibilidades de atendê-las. Experimentam o desafio de se inserir produtivamente na vida social contando com poucos suportes para a conquista de uma profissão em mercados de trabalho cada vez mais precários, desprotegidos e que possuem a incerteza frente ao futuro como característica. 

A expansão do ensino médio para os jovens das classes populares brasileiras é relativamente recente. Somente a partir dos anos 1990 foi possível perceber a expansão do ensino médio público antes reservado para a minoria das classes médias e superiores. E foi apenas em 2009 que esta etapa de ensino passou a ser parte da educação básica, de oferta pública obrigatória. Neste artigo, chamamos a atenção para os suportes – materiais e simbólicos – necessários para auxiliar os jovens – especialmente aqueles que conciliam estudo e trabalho – a cursarem e concluírem o ensino médio sem interrupções e com a qualidade necessária que permita que estes se insiram produtivamente na vida social e profissional ou ainda, caso queiram, prossigam estudando.

A situação do ensino médio no Brasil

No ano de 1991, 43,1% dos adolescentes de 15 a 17 anos estavam matriculados no ensino médio regular, faixa etária considerada adequada para este nível de ensino. Em 2011, o percentual chegou a 64,9% e, em 2023 (1), a 75%. Esses dados demonstram que a expansão da oferta de ensino médio foi contínua. Em 2023, a distorção idade‐série (2) no Ensino Médio foi de 19,5%, menor que os 22,2% de 2022. A distorção é maior na rede pública, especialmente na 1ª série do Ensino Médio, e os rapazes têm taxas de distorção superiores às das moças. Isso pode ser atribuído à transição do Ensino Fundamental para o Médio, à falta de políticas inclusivas e à concentração de escolas de Ensino Médio em áreas urbanas.

A expansão do ensino médio para um público mais popular e diversificado nos últimos 30 anos aqueceu também as expectativas de mobilidade escolar e social dos setores mais empobrecidos da sociedade. Em conjunto com a expansão da escolarização de ensino médio para as classes populares está o desafio de oferta de uma educação de qualidade, de uma escola que consiga acolher e apoiar o maior número possível de jovens e ao mesmo tempo promover relações sociais e educativas estimulantes e significativas para essas novas gerações que chegam à escola.

No Brasil, sabemos que a desigualdade tem cor. Estudo recente do Observatório da Branquitude (3) analisou as condições de infraestrutura das escolas brasileiras considerando o recorte racial de seus estudantes. Analisou dados do censo escolar de 2021 a partir de um índice que define escolas como predominantemente brancas (com 60% ou mais de seus estudantes autodeclarados brancos) e predominantemente negras (com 60% ou mais de seus estudantes autodeclarados negros). Quase 70% das escolas brasileiras com melhor infraestrutura são predominantemente brancas. E é também nestas escolas que o Índice Socioeconômico (INSE) é maior. A maioria das escolas de estudantes predominantemente brancos tem biblioteca, laboratório de informática, quadra esportiva e é atendida por rede de esgoto ao passo que a maioria das escolas de estudantes predominantemente negros não tem tais equipamentos e serviços. Associados a esses dados tem-se que a evasão escolar no ensino médio é mais prevalente entre os estudantes de menor renda.

Jovens brasileiros diante do desafio biográfico

Em um mundo onde a escassez de recursos materiais e simbólicos é uma realidade para muitos jovens pobres, a produção de si ocorre em meio a uma teia complexa de desafios. Nestas circunstâncias, os corpos jovens são frequentemente sobrecarregados com os ônus das crises sociais sistêmicas. Não é incomum que esses jovens sejam culpabilizados por escolhas feitas em condições marcadas por desigualdades estruturais, instabilidades econômicas e restrições sociais e culturais herdadas. Diante desse cenário desafiador, as promessas de bem-estar social muitas vezes se desfazem diante das realidades objetivas de suas vidas.

Os riscos sociais emergem em escala de crise sistêmica, porém, recaem de forma desproporcional sobre comunidades específicas e indivíduos. Apesar das transições para a vida adulta serem cada vez mais complexas e não lineares, os jovens buscam estratégias pessoais de autonomização. Nesse contexto, eles e elas enfrentam uma maior margem de autonomia na construção de suas identidades, mas também se deparam com graves inseguranças e incertezas em relação ao futuro.

Os desafios de conciliar escola e trabalho

Muitos jovens de baixa renda enfrentam a necessidade de trabalhar enquanto estudam para ajudar a sustentar suas famílias ou para custear seus próprios gastos pessoais. Essa realidade pode impor uma carga significativa sobre esses estudantes, uma vez que precisam equilibrar responsabilidades acadêmicas com horários de trabalho, muitas vezes, extenuantes e em atividades que não guardam nenhuma relação com os conteúdos educacionais e o próprio processo de escolarização.

Se, por um lado, combinar estudo e trabalho é um dos traços geracionais que evidenciam a experiência de viver o tempo de juventude em situação de pobreza no Brasil, por outro, vivenciar relações de trabalho pode contribuir para que jovens percebam os significados da escolarização para a mobilidade econômica e social.

Transformações radicais no mundo do trabalho têm priorizado a maximização de lucros em detrimento da proteção dos trabalhadores. Nesse contexto, tanto o Estado quanto as diversas instituições sociais têm falhado em fornecer o suporte necessário aos jovens de classes empobrecidas durante a transição para a vida adulta. Isso inclui garantir oportunidades de transição suave entre a escola e o mercado de trabalho, assim como oferecer condições adequadas para conciliar estudos e emprego.

Com a proliferação do trabalho flexível e precário, a inserção no mercado de trabalho tornou-se altamente incerta. Jovens provenientes das camadas populares enfrentam uma batalha desigual, tentando equilibrar trabalho e estudo, ao mesmo tempo em que questionam o valor dos diplomas na busca por empregos estáveis. Eles e elas aspiram por trabalhos que ofereçam flexibilidade e segurança, permitindo-lhes não apenas uma remuneração justa, mas também tempo livre suficiente para desfrutar da vida.

Para jovens da Educação de Jovens e Adultos (EJA), o retorno à escola representa uma chance de reavaliar sua importância e melhor se posicionar na sociedade. As experiências vividas em outros espaços e momentos possibilitam a esses jovens compreender a importância da escola, de seus códigos e linguagens, para melhor se situar na sociedade. Quando muitos desses jovens passam a vivenciar os entraves provocados pela ausência de credenciais escolares, seja no mercado de trabalho ou na vida social, a interrupção dos estudos é revista e o reingresso passa a ser alternativa. A correlação entre trabalho, estudo e expectativas de futuro influencia as projeções dos jovens. Dados da pesquisa “Jovens Fora de Série” (4), que desenvolvemos com jovens estudantes da EJA, evidenciam que jovens que conciliam trabalho e estudo têm maiores expectativas de ampliar sua formação, seja seguindo o ensino superior seja realizando um curso profissionalizante. Os que não viveram a mesma condição tendem a buscar apenas emprego, com menos planejamento para o futuro. Neste sentido, a experiência do trabalho amplia o campo de projeção do futuro, mas precisa vir acompanhada de proteção e suporte para conciliar estudo e trabalho.

Se, por um lado, trabalhar e estudar é um peso adicional na vida do jovem estudante, por outro lado, podemos dizer que os conhecimentos e experiências que os jovens trabalhadores levam para a escola contribuem para o diálogo entre os conhecimentos escolares e os saberes das experiências desses jovens trabalhadores. Nesta perspectiva, reconhecer que os jovens estudantes que trabalham trazem consigo uma multiplicidade de conhecimentos e experiências positivas pode dar mais vida ao ambiente escolar.

Suportes

Além dos desafios acadêmicos, os jovens que trabalham e estudam simultaneamente podem enfrentar dificuldades socioemocionais. O estresse, a sobrecarga e o isolamento geram falta de tempo e disposição para interações sociais e atividades de lazer. Essa sobrecarga pode levar a problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão. É fundamental, portanto, que políticas públicas e programas educacionais sejam desenvolvidos levando em consideração a realidade dos jovens que precisam conciliar trabalho e estudo. Isso inclui a implementação de políticas que garantam condições de trabalho adequadas para jovens trabalhadores, bem como a criação de programas de apoio específicos nas escolas para reconhecer as singularidades de vida  desses estudantes.

Flexibilidade nos horários de aula, programas de tutoria e orientação, acesso a serviços de saúde mental e apoio financeiro, como bolsas de estudo ou auxílios para transporte e alimentação são algumas das medidas de suporte que se articulam com as necessidades específicas de jovens que precisam conciliar estudo e trabalho.

Neste ano de 2024, foi iniciada uma política pública em âmbito nacional, que veio somar a outras políticas já existentes em alguns estados brasileiros. O Programa incide diretamente sobre a melhoria dos suportes para que jovens do ensino médio prossigam na escola. O Programa Pé de Meia (5), lançado pelo Governo Federal, oferece incentivo financeiro-educacional aos estudantes do ensino médio público, visando promover permanência e conclusão escolar, e reduzir desigualdades sociais. Os beneficiários recebem R$9.200,00 ao longo do período, condicionados à matrícula, frequência, aprovação e participação no Enem. Ao destinar recursos diretamente aos estudantes, o programa demonstra confiança governamental nos jovens e estimula sua autonomia. O Pé de Meia é promissor para melhorar o aproveitamento escolar e possibilitar que jovens em vulnerabilidade socioeconômica concluam o ensino médio, evitando o abandono escolar em busca de sustento familiar.

Conclusão

Para mitigar disparidades, ampliar oportunidades e nivelar as distâncias entre as posições sociais dos mais pobres e mais ricos é essencial fornecer, além de suporte socioeconômico, suporte acadêmico adicional, como programas de suporte ao estudo, tutorias individuais, ampliação de experiências culturais e acesso gratuito a material didático e tecnologia. Essas medidas ajudam a nivelar o campo de jogo e garantir que todos os estudantes tenham oportunidades iguais de aprendizado numa perspectiva de construção de uma escola justa.

Ao fornecer suporte financeiro, acadêmico e socioemocional aos estudantes as escolas podem desempenhar um papel fundamental na redução das disparidades educacionais e no apoio aos percursos escolares de jovens pobres no ensino médio. Investir nessas áreas não apenas beneficia os estudantes individualmente, mas também contribui para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.


Ana Karina Brenner: Doutora em Educação. Professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UERJ. 

Paulo Carrano: Doutor em Educação. Professor associado IV da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador Produtividade CNPq – Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF. 

Notas finais e referências