Uma Educação para a Cidadania com sentido
Apesar das inúmeras menções à “educação para a cidadania” em documentos oficiais e na Internet, a prática no Brasil revela um cenário menos otimista, devido à sua polissemia e baixa sistematização conceitual. Ao propor um enquadramento para o significado de “educação para a cidadania”, ajudamos à operacionalização do conceito e à implementação e avaliação de iniciativas pedagógicas concretas.
Ao realizarmos uma pesquisa rápida no documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pela palavra “cidadania”, encontraremos 47 menções (Brasil, 2018; Burgos, 2024). No artigo 205 da Constituição Federal, observamos que, entre outras coisas, a educação visa o “preparo para o exercício da cidadania” (Brasil, 1988). A UNESCO fala em “educação para a cidadania global” (UNESCO, 2015; Reimers, 2021). E, para além dessas referências de destaque, se buscarmos na internet sobre “educação e cidadania”, encontraremos milhares de resultados.
Essa abundância de materiais poderia nos levar à precipitada intuição de que “educação para cidadania” é um tema bastante consolidado no Brasil. Porém, uma pesquisa do Ipec, da Fundação Tide Setúbal e da Avaaz entrevistou mais de mil jovens brasileiros de 16 a 34 anos para entender suas percepções sobre questões políticas e sociais do país. A pesquisa apontou que 1 em cada 5 jovens, entre 16 e 34 anos, não compreende o conceito de democracia; 92% não confiam ou confiam pouco nos partidos políticos; e 59% deixam de debater política nas redes sociais por medo de serem cancelados (IPEC, 2022). Sem falarmos nas baixarias e pobreza de propostas com as quais estamos nos deparando nas campanhas dessas eleições de 2024 – o que, infelizmente, não são grandes novidades.
Ou seja, apesar da grande quantidade de fontes importantes que relacionam “educação” e “cidadania”, na prática, o cenário não é tão positivo.
Por que esse contraste?
Palavras utilizadas de modo indiscriminado, apesar de serem muito mencionadas, concretamente, tendem a se tornar meras “frases de efeito”. No Brasil, parece ser esse o caso de “educação para cidadania”.
Diante desse cenário de polissemia e de baixa sistematização conceitual, é essencial que surjam iniciativas que, sem deixar de valorizar as potencialidades peculiares dos diferentes territórios, indiquem referências consistentes para ajudar a pautar o debate sobre o tema, favorecendo uma maior coerência nas discussões, aprendizados e avaliações, a partir de critérios básicos comuns. Em outras palavras, é preciso buscarmos sentidos compartilhados para compreendermos a educação para cidadania de um modo razoavelmente consensual, para assim não patinarmos numa contínua “torre de Babel”.
Assumindo tal desafio, após um trabalho de amplo mapeamento de iniciativas nacionais e internacionais, realizado em 2023, o Instituto Sivis e o Itaú Social elaboraram um Quadro de Referências de educação para cidadania, organizado em 3 dimensões fundamentais:
- Valor humano: importância da dignidade humana, igualdade e valor intrínseco e inalienável de cada um.
- Vida em sociedade: importância da vida em comunidade, da cooperação e da solidariedade para a promoção do bem comum.
- Vida política: importância dos valores democráticos para atingir o bem comum e o florescimento humano.
Por sua vez, cada uma dessas dimensões se desdobra em respectivas competências e habilidades, visando o desenvolvimento integral de cada estudante. Fundamentada em evidências, tal referência contribuirá para fomentar que os estudantes adquiram conhecimentos mais profundos sobre si, sobre seu papel na sociedade, seus direitos e deveres, o funcionamento das instituições, as políticas públicas, os debates em torno de temas relacionados ao bem comum e assim por diante.
Ao propor uma referência robusta para o significado de “educação para a cidadania”, tal quadro auxilia a operacionalização de conceitos comuns e, como consequência, a implementação e avaliação de iniciativas pedagógicas concretas. Em suma, oferece-se sentidos mais claros para a educação para cidadania no Brasil.
Certamente, ao formarmos as novas gerações a partir de uma educação cidadã para o desenvolvimento integral, promoveremos um verdadeiro ciclo virtuoso, em que cidadãos críticos e bem-informados opinam e tomam decisões mais bem fundamentadas, são genuinamente tolerantes com quem pensa diferente, participam do debate público de modo mais civilizado e qualificado, engajam-se ativamente em iniciativas sociais e, finalmente, tendem a apoiar líderes e políticas que reflitam melhor seus valores e os interesses do bem comum.
Guilherme Melo de Freitas. Especialista de Educação do Instituto Sivis. É graduado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e doutorando em Educação pela mesma instituição (FE-USP). Pedagogo, com experiência em sala de aula e em orientação educacional nas redes pública e privada, foi coordenador de projetos da Secretaria de Educação de Suzano (SP) e foi Diretor de Estudos e Avaliação na Secretaria da Família do Município de Osasco (SP). Também trabalhou em organizações do Terceiro Setor dedicadas à educação (Todos pela Educação, Centro Lemann, Instituto Reuna, Oficina Municipal, Instituto Votorantim e Profissão Docente).
Referências
- Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
- Brasil (2018). Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação.
- Burgos, M. (2024). BNCC and education for citizenship. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.9013
- Ibáñez, A. (2020). A urgência de uma educação mais global. EDUforics. Disponível neste link.
- Ibáñez, A. (2020). Qual é a base imprescindível para construir a competência global? EDUforics. Disponível neste link.
- IPEC (2022). Democracia e eleições. (Pesquisa encomendada pela Fundação Tide Setúbal em parceria com a Avaaz).
- Reimers, Fernando M. (2021). Educar os estudantes para melhorar o mundo. CAED/UFJF.
- UNESCO (2015). Educação para a cidadania global: preparando alunos para os desafios do século XXI. Disponível neste link.