É possível falar em educação sem falar de desigualdade?

18 setembro 2024
O “capital cultural” da família influencia sistematicamente as trajetórias escolares; Portanto, os resultados obtidos não dependem exclusivamente do esforço pessoal (Imagem: Aluno em escola brasileira/iStock).

A autora deste artigo, socióloga e pesquisadora brasileira, sustenta que a compreensão do processo educacional deve ser submetida a uma reflexão profunda sobre as desigualdades sociais e econômicas que influenciam a aprendizagem e os resultados escolares das pessoas, porque a desigualdade não é um aspecto marginal, mas um elemento central que define e condiciona as trajetórias educativas.

O processo de aprendizagem escolar é multidimensional: envolve não apenas o estudante e a escola, mas também fatores externos a esses, os quais influenciam neste processo. A discussão em torno das trajetórias escolares e dos resultados do processo de escolarização ultrapassa as fronteiras das escolas e das famílias, trazendo a questão para o centro do debate político e acadêmico.

Esse fato se torna especialmente relevante no contexto brasileiro, marcado por desigualdades sociais expressivas, que se refletem nas trajetórias escolares dos indivíduos desde muito cedo. A disparidade no acesso a recursos educacionais, a variação na qualidade das infraestruturas escolares e as diferenças nas oportunidades de aprendizagem disponíveis são alguns exemplos de como as desigualdades sociais moldam o sistema educacional. As condições socioeconômicas das famílias, como a renda e o nível de escolaridade dos pais, também influenciam significativamente o processo de escolarização dos alunos e suas perspectivas de sucesso acadêmico. Ademais, a localização das escolas e os recursos com que elas contam frequentemente refletem e perpetuam as desigualdades existentes nas comunidades em que estão inseridas.

Nesse sentido, ao falar sobre a educação no contexto brasileiro, é essencial considerar as desigualdades que a afetam – e como a afetam. O presente texto pretende indicar o porquê a compreensão do processo educacional brasileiro deve passar por uma profunda reflexão das disparidades sociais e econômicas que influenciam a aprendizagem e os resultados escolares dos indivíduos. Como apresentarei a seguir, a desigualdade não é um aspecto marginal, mas um elemento central que define e condiciona as trajetórias educacionais.

A desigualdade não é um aspecto marginal, mas um elemento central que define e condiciona as trajetórias educacionais

A relação entre indivíduo, escola e família

A literatura sociológica em educação (COSTA, 2008; SOARES; ALVES, 2013; NOGUEIRA et al., 2015; BRITO, 2017) aponta para a importância de se pensar a relação entre indivíduo e escola como um fenômeno multifacetado, levando em conta fatores externos a esses dois atores que influenciam no decorrer do processo de escolarização e aprendizagem, sendo a família um elemento central de influência. Para esses trabalhos, a “herança familiar” influencia sistematicamente as trajetórias escolares – logo, os resultados obtidos independem do simples esforço individual e não estão atrelados apenas à dimensão pessoal.

Características morfológicas e socioeconômicas do grupo familiar, como a renda, o nível de escolaridade dos pais e o acesso a bens culturais, produzem efeitos nos resultados escolares dos indivíduos. Logo, as diferenças de desempenho dos alunos estão comumente atreladas a diferenças objetivas entre os mesmos, oriundas, sobretudo, dos elementos que os indivíduos dispõem em seu ambiente familiar. Essas diferenças objetivas contribuem para a configuração de diferentes destinos escolares. Isso não significa dizer que não possam, obrigatoriamente, haver exceções. Mas é importante elucidar que se tratam, justamente, de exceções, e não da regra. Duas famílias, uma em que os pais possuem ensino superior e outra em que nenhum dos pais concluiu o ensino médio, vivenciam experiências distintas em relação aos mesmos aspectos. Essas diferenças moldam de maneira significativa as oportunidades educacionais dos filhos, levando a trajetórias escolares distintas (Nogueira et. al, 2015).

O nível de escolaridade está diretamente atrelado à renda e a disposição de bens culturais da família, fatores que impactam a experiência escolar dos estudantes. Além disso, as escolhas dos pais são feitas partindo das oportunidades e limites colocados pela própria estrutura social, o que envolve “a posição social da ocupação dos pais, a estrutura familiar, os capitais econômico e cultural da família, suas redes sociais, bem como outros aspectos que caracterizam a posição social e as disposições culturais da família” (cf. ALVES, 2010, p. 448).

Outro aspecto importante levantado pela literatura é que há efeitos advindos do próprio ambiente escolar que operam como determinantes do destino e do resultado escolar dos indivíduos. É importante se considerar que toda instituição de ensino está inserida em um contexto social sobre o qual não se tem controle, mas que impacta diretamente as relações estabelecidas nesses espaços de aprendizagem, bem como o processo de ensino e aprendizado em si. O contexto em que as escolas estão inseridas tanto criam restrições como oportunidades estruturais para as escolas e seus alunos (RIBEIRO, 2013). Fatores como a localidade, a violência, a criminalidade, os recursos físicos e os aspectos didáticos de cada escola impactam diretamente o tipo de experiência e os resultados obtidos pelos indivíduos ao longo da trajetória escolar.

De acordo com Costa (2008), o local da escola é determinante do tipo de aluno que será atendido por essa, sobretudo no sistema público, onde os alunos são alocados em escolas próximas de suas residências, ainda que essas não sejam as mais prestigiosas. Isso se deve ao fato de que há uma correlação entre o nível socioeconômico das famílias e as escolhas feitas pelas mesmas. Famílias de classe mais alta comumente optam pelas escolas mais prestigiadas, independente da localidade e custos de locomoção e investimento necessários. Esse cálculo tem menos importância e peso decisório do que para famílias de classe mais baixa, que comumente precisam optar por escolas que, ainda que sejam menos prestigiadas e tenham um desempenho geral mais baixo, são mais próximas de casa e não demandam um investimento em termos de locomoção, por exemplo. Enquanto para famílias mais ricas a qualidade oferecida pela escola é o principal motor da decisão, para famílias mais pobres é preciso fazer um cálculo não apenas do quanto, mas se é possível dispor seus recursos materiais para tal. Há uma delimitação do horizonte de escolha que é condicionada pelo nível socioeconômico das famílias.

Dessa forma, os recursos materiais e humanos das escolas refletem a sua localização. As escolas públicas localizadas em zonas periféricas atendem predominantemente alunos com um nível socioeconômico mais baixo e apresentam comumente piores condições objetivas no que tange o espaço físico e o corpo docente, sobretudo se comparados a escolas públicas em regiões centrais das capitais (SOARES, 2004). Quando comparadas às escolas privadas, essa distância é ainda mais significativa.

Estudos sobre a influência da escola no processo de escolarização e aprendizagem dos indivíduos apontam que as escolas, por si só, não são capazes de barrar a força da estrutura social. Entretanto, algumas instituições de ensino obtêm êxito em proporcionar um aprendizado melhor que o esperado para as condições sociais de seus alunos dadas as suas características próprias (SOARES; ALVES, 2013 apud LEE, 2008).

De modo geral, existem três principais fatores apontados pela literatura que determinam o desempenho cognitivo dos indivíduos no processo de escolarização: àqueles associados à estrutura escolar, os associados à família e os relacionados ao próprio aluno. Estudos realizados ao longo dos anos de 1950 e 1960 apontam que os fatores externos à escola explicam mais as desigualdades de resultados dos alunos que os fatores internos desta. Além disso, confirmam que não apenas os resultados escolares, como também o acesso a oportunidades educacionais, está diretamente ligado a aspectos socioeconômicos e culturais dos indivíduos e de suas famílias (SOARES, 2004).


Tayná Mendes é socióloga e pesquisadora. Bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e Mestranda em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED/IFCS) e associada ao Centro para Estudos da Riqueza e da Estratificação Social (CERES/IESP). Trabalha com foco nos temas de desigualdades de resultados e oportunidades educacionais, desigualdades de gênero, origem social e dinâmicas familiares, trajetórias sociais e métodos de pesquisa. Participou do projeto Aula GO da Fundação SM.


Referências bibliográficas

  • Alves, Fátima (2010). “Escolhas Familiares, Estratificação Educacional e Desempenho Escolar: Quais as Relações?”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 2, pp. 447-468.
  • Brito, Murillo (2017). “Novas tendências ou velhas persistências? Modernização e expansão educacional no Brasil”. Caderno de Pesquisa, v. 47, n 163, pp. 224-263.
  • Costa, Marcio da (2008). “Prestígio e hierarquia escolar: estudo de caso sobre diferenças entre escolas em uma rede municipal”. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n 39, pp. 455-594.
  • Nogueira, Cláudio; Resende, Tânia; Viana, Maria José B. (2015). “Escolha do estabelecimento de ensino, mobilização familiar e desempenho escolar”. Revista Brasileira de Educação, v. 20, n 62, pp. 749-772.
  • Ribeiro, Eduardo (2013). “Vizinhança, violência urbana e educação no Rio de Janeiro: efeitos territoriais e resultados escolares”. BIB, São Paulo, n 7, pp. 41-87.
  • Soares, José Francisco (2004). “O efeito da escola no desempenho cognitivo de seus alunos”. REICE – Revista Electrónica Iberoamericana sobre Calidad, Eficacia y Cambio en Educación, v. 2, n. 2, pp. 83-104.
  • Soares, José Francisco; Alaves, Maria Teresa (2013). “Efeitos de escolas e municípios na qualidade do ensino fundamental”. Caderno de Pesquisa, v. 43, n 149, pp. 492-517.