Se a desigualdade importa, faz sentido falar em mérito?

19 setembro 2024
Nos resultados educacionais conta não só o esforço individual dos alunos, mas também a distribuição desigual dos bens sociais e das condições objetivas que operam em cada contexto social (imagem: iStock).

Em artigo anterior, a autora concluiu que fatores externos à escola explicam mais as desigualdades nos resultados dos alunos do que fatores internos da escola, especialmente em contextos de grande desigualdade, como o Brasil. Se for assim, o conceito de meritocracia não deveria ser reconsiderado?

Para a perspectiva meritocrática, a igualdade formal de acesso às oportunidades educacionais seria suficiente por si só. Aqueles indivíduos que mais se esforçassem e melhor manejassem os recursos dos quais dispõem obteriam melhores resultados e, consequentemente, maiores retornos, justificados pelo talento, pelo esforço e pelo mérito dos mesmos. O desempenho dos alunos seria uma questão de capacidade de natureza puramente individual. A afirmação de que os processos educacionais dependem exclusivamente do esforço individual dos estudantes ignora, entretanto, as consequências da distribuição desigual dos bens sociais e as condições objetivas que operam em cada contexto social.

Uma série de pesquisas na área de sociologia da educação apontam para uma dimensão oposta: existe um processo de “delimitação do horizonte de escolha” que é condicionado à posição dos indivíduos em termos de classe, etnia e gênero, bem como condicionada pela experiência e pelo ambiente social em que esses indivíduos estão inseridos (Nogueira, 2004). Diferentes experiências de vida implicam em distribuições de bens sociais e acesso a oportunidades diferentes. Consequentemente, o que se resulta disso são diferentes destinos escolares e diferentes desempenhos/resultados (Soares, Alaves, 2013).

Bourdieu, em diversos trabalhos organizados na coleção “Escritos da Educação” (2007), apresenta conceitos fundamentais para entender esse processo, como o de capital cultural. Para o autor, há uma espécie de herança social que se constitui pelo conjunto de conhecimento, informações, códigos linguísticos e comportamentos dos quais os indivíduos, em diferentes contextos sociais, dispõem, e os quais são responsáveis pela diferença de rendimento dos indivíduos nos processos educacionais.

Segundo o autor, para um percurso escolar regular, a escola demanda, de forma consciente ou inconsciente, que todos os indivíduos tenham uma relação natural e familiar com a cultura e com a linguagem. Dessa forma, acaba por privilegiar a relação com o saber muito mais do que o saber em si (Muzzeti, 2000). Essa relação de familiaridade com a cultura e com a linguagem, por sua vez, é apropriada pelos indivíduos no ambiente familiar. Essa apreensão ocorre de maneira difusa e imperceptível, e é proporcionada, sobretudo, pelas famílias de classe mais alta (“classes cultas”), que dispõe de mecanismos objetivos e materiais para tal. Como essa familiaridade ocorre quase que de forma osmótica, advinda do contexto familiar, ela não é percebida como tal e acaba por reforçar, nos indivíduos de classe mais alta, sobretudo, a noção de que esse conhecimento e familiaridade é fruto de um “dom”, de uma “aptidão” e “vocação” inatas, naturais (Bourdieu, 2007). O que acontece, na prática, é que os processos educacionais são atravessados por condições objetivas que influenciam as experiências individuais. Existem fatores alheios à vontade e ao esforço dos indivíduos que influenciam os processos escolares, e sobre os quais os mesmos não possuem controle.

Isso não significa dizer que o esforço individual não produza resultados. Ao realizar um exame como o ENEM, um aluno que tenha dedicado tempo e esforço para estudar e dar conta de toda a literatura da prova, por exemplo, tem mais chances de passar que um aluno que não tenha dedicado tanto tempo para o estudo das matérias exigidas. Nesses termos, o esforço de cada um produzirá um resultado específico. Os aspectos ocultos implicados nessa diferenciação, entretanto, é que não podem ser justificados pelo mero esforço e vontade pessoal. Se esse aluno que estudou menos o fez porque precisa conciliar estudos com trabalho, para ajudar a sustentar a casa ou até mesmo se sustentar de forma independente, por exemplo, existe então uma condição objetiva que o coloca atrás do outro candidato, que pode não tem qualquer outra demanda e que pode se dedicar exclusivamente a isso. Dessa forma, o fato de ambos estarem num mesmo nível educacional e estarem disputando uma vaga que os permitirá avançar no sistema educacional, não garante que ambos tenham um ponto de partida igual.

O mesmo raciocínio se aplica ao considerar como o nível socioeconômico das famílias influencia as perspectivas educacionais. Para famílias de classe média e alta, a questão não é se os filhos farão faculdade, mas qual instituição escolherão e quais recursos poderão investir em sua formação. Esses indivíduos, muitas vezes, têm acesso a informações sobre processos seletivos, orientação vocacional e até mesmo preparação para exames. Em contraste, para famílias de classe mais baixa, o ensino superior muitas vezes nem sequer faz parte do horizonte de possibilidades. Além disso, essas famílias enfrentam com mais frequência a necessidade de que seus filhos comecem a trabalhar cedo para contribuir com a renda familiar, o que compromete significativamente sua continuidade nos estudos. A pressão para se priorizar o trabalho em detrimento da educação cria barreiras quase intransponíveis para muitos jovens dessas famílias.

É nesse sentido que a literatura evidencia o peso que condições objetivas e exteriores aos indivíduos possuem nos processos de escolarização, as quais impactam diretamente os resultados obtidos pelos mesmos. Não se trata, pois, meramente de uma questão de esforço individual. Fatores como a escolaridade dos pais, o acesso a bens culturais, estratégias das famílias em sua relação com a escolaridade dos filhos, bem como as dinâmicas e os processos de socialização familiares e escolares, contribuem para configurar diferentes destinos escolares aos indivíduos. A origem social, por exemplo, impacta diretamente o nível de escolarização formal dos mesmos.

Nesse sentido, afirmar que os processos educacionais dependem exclusivamente do quanto de esforço os indivíduos investem neles, não apenas ignora uma longa tradição de estudos que apontam para influência de diversos aspectos nesse processo, como também imputam toda a culpa pela desigualdade nos indivíduos, ignorando aspectos estruturantes da mesma. A noção de que as instituições de ensino garantem igualdade de oportunidades é contraditória frente às evidências de que as mesmas não eliminam a correlação entre desigualdade social, desempenho escolar e inserção social dos indivíduos (Ribeiro, 2012). A experiência escolar é perpassada, assim, por circunstâncias que vão além da governabilidade dos estudantes.

Conclusão

Conforme explicitado acima, discutir a educação no Brasil sem considerar essas desigualdades é como tentar construir uma casa sobre alicerces já comprometidos por rachaduras. As desigualdades sociais e econômicas, tão profundamente enraizadas em nossa sociedade, não apenas enfraquecem a base sobre a qual a educação deveria se sustentar, mas também criam trajetórias desiguais para os estudantes, desde o início de sua jornada escolar. Ignorar essas falhas estruturais é perpetuar um sistema educacional que, em vez de nivelar oportunidades, acaba reproduzindo e exacerbando as disparidades existentes. Se desejamos realmente construir uma educação sólida, inclusiva e transformadora, precisamos reconhecer e enfrentar essas fissuras. Somente ao reparar as fundações comprometidas, assegurando que todos os estudantes partam de uma base justa e equitativa, poderemos garantir que a educação cumpra seu papel de ser uma ferramenta de ascensão social e desenvolvimento humano.


Tayná Mendes é socióloga e pesquisadora. Bacharel em Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e Mestranda em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (NIED/IFCS) e associada ao Centro para Estudos da Riqueza e da Estratificação Social (CERES/IESP). Trabalha com foco nos temas de desigualdades de resultados e oportunidades educacionais, desigualdades de gênero, origem social e dinâmicas familiares, trajetórias sociais e métodos de pesquisa. Participou do projeto Aula GO da Fundação SM.

Referências bibliográficas

  • Bourdieu, Pierre (2007). Escritos da Educação. 9. ed. Petrópolis: Editora Vozes.
  • Muzzeti, Luci Regina (2000). “Escritos da Educação (Resenha)”. Revista Educação & Sociedade. v..21, n.73, pp. 257-261.
  • Nogueira, Cláudio; Resende, Tânia; Viana, Maria José B. (2015). “Escolha do estabelecimento de ensino, mobilização familiar e desempenho escolar”. Revista Brasileira de Educação, v. 20, n 62, pp. 749-772.
  • Soares, José Francisco; Alaves, Maria Teresa (2013). “Efeitos de escolas e municípios na qualidade do ensino fundamental”. Caderno de Pesquisa, v. 43, n 149, pp. 492-517.