Cartas a Jovens educadores – Chiqui González

22 novembro 2019

Em 2015, durante as ocupações das escolas públicas de São Paulo, realizadas por estudantes secundaristas, o poeta, jornalista e educador André Gravatá se viu impactado por uma pergunta feita por uma das jovens: “o que você sugere para eu ler sobre educação?”. A resposta ao questionamento, gestada por quatro anos, acaba de ser materializada na publicação Cartas a jovens educadores/as, inspirada na obra Cartas a um jovem poeta, do poeta Rainer Maria Rilke.

Organizado por Gravatá e ilustrado pela designer Serena Labate, o livro reúne vinte e cinco cartas destinadas aos jovens, escritas por educadores de diversas partes do Brasil, Argentina e Colômbia. “Este livro surge da necessidade de provocar mais e mais jovens a se envolverem com a área da educação, por meio de vozes que apontam sentidos, encantamentos, fôlegos. É um livro que nasce da necessidade de aproximar diferentes perspectivas em diálogo, de afirmar: é hora de criar mais intimidade com o Brasil e com nossos vizinhos latino-americanos”, explica o jornalista.

E é sob o signo do diálogo que iniciamos, com essa postagem, a publicação semanal das cartas. Esperamos que os textos selecionados inspirem novos olhares e maneiras de agir no mundo. A primeira carta que compartilhamos foi escrita por Pilar Lacerda, Diretora da Fundação SM. Boa leitura!

Por Chiqui González

Queridos professores(as), educadores(as), guias, apaixonados(as) que acompanham outras pessoas de todas as idades na aventura de aprender.

Para começar, quero contar a vocês que não fui feliz, nem na escola nem na universidade. Os es-paços educativos me davam medo e passava as ho-ras olhando pelas janelas para ver se alguém estava vindo me buscar. Não suportava o sistema, as maté-rias cindidas, a rotina temporal, os recreios caóticos, a espera, a disciplina. Decidi assumir o sistema com boas notas e reconhecimento, assim consegui car mais sozinha com minha imaginação e minha po-bre poesia rabiscada em papéis que não mostrava e que, claro, se perderam nas mudanças.

Com cinco anos, minha professora me acusou de “demasiado imaginativa”, o que, lido de forma clara e sem dissimulações, significava “é uma menina que mente”. Minha mãe me ensinou uma lição nesse dia: disse que eu era uma menina “inventora”, e não mentirosa. Que esse título ninguém poderia me roubar, e que eu devia fazer da invenção uma prática para toda a vida.

Cresci, claro, e sempre estive em fricção com o sistema educativo, um sistema com um núcleo duro proveniente do século 19, que, apesar de criatividades e rachaduras, ninguém pôde rompê-lo.

Encontrei na aprendizagem e no ensino de teatro uma forma de recuperar meu corpo e a criação grupal que é um verdadeiro presente da vida. Por aquelas épocas, havia terminado duas carreiras universitárias e ensinava atuação à noite e Direito Penal I durante manhãs e tardes. Uma conjunção inesquecível entre a pena, o direito de defesa e a iminência do corpo, os processos emocionais, os momentos maravilhosos da cena.

Em plena ditadura argentina, fui professora e ensinei em todos os espaços de que tenho recordações: as favelas, as escolas, as igrejas, a rua, os sindicatos etc.

Dizer que ensinei é dizer, por sua vez, que aprendi a viver. Todavia, ainda sigo cheia de medos e incertezas.

As perguntas circulam ao redor da minha cabeça como pássaros insistentes que cantam:

  • Para que aprendemos e ensinamos? Para chamar de “conhecimento” os conteúdos curriculares, despojados da sua forma em um catálogo anacrônico e inviolável?
  • Para encontrar uma maneira de “viver juntos” em sociedades violentas e individualistas?
  • Para ensinar-nos a “ser uma pluralidade de identidades” e para “fazer pensar” o aluno com todo o corpo transformando a matéria?
  • Para ensinar-nos a aprender, ou seja, a buscar o que sabemos, o que não sabemos e todas as informações atravessadas por nossas subjetividades?

Lutamos para compreender a condição humana e a arte de viver. É uma iminente necessidade nestes anos do planeta, do nosso continente, dos nossos países. Temos que fazer com que o sul do mundo fale, herdeiros que somos de Freire,Vygotsky, Bruner, Piaget, Foucault etc.

É imprescindível entender que os tópicos e temas que ensinamos, as orientações e especializações são o enorme detalhe de uma educação que, na realidade, deveria fazer outra coisa: substituir a espera por esperança, reconstruir o “entre nós”, lutar contra a desigualdade, criar uma nova fraternidade recorrendo à organização da própria comunidade. Mas, sobretudo, devemos defender os sistemas de representação e de simbolização, a multiplicidade de linguagens que nos dá possibilidades de aparecer diante dos olhos dos outros e não ser invisíveis no meio da especulação e da corrupção.

Já disse WimWenders: se a humanidade perde a narração, o pensamento poético e a memória, terá perdido a sua infância.

Não imagino uma vida sem infância, e me aterroriza a possibilidade de uma sociedade sem ela.

Ainda que eu volte para um diagnóstico conhecido, o paradigma do século 19 deve terminar com as separações entre corpo e mente, forma e conteúdo, objeto e sujeito, teoria e prática e tantas outras. Esses campos divididos em e por matérias limitaram a “forma” à educação artística e o corpo à educação física, dissolveram a força da ação, do movimento, da transformação e se enamoraram do conteúdo, do argumento, da lógica formal, do significado e da razão, sobrepondo-se a toda a integralidade das pessoas que educamos. Segundo Edgar Morin, também fazemos o elogio da simplificação e qualificamos o que é normal e o que não é, enquanto dizemos, em sussurros, que o erro é um fracasso e não uma forma de aprendizagem.

Por isso Morin fala de uma complexidade que é global, transversal, multicultural, integradora, articuladora e sonhadora. Não existe o pensamento nem a ação complexa sem uma forte rede conceitual nutrida pela poética (uma visão diferente, distante e verdadeira sobre a justi cação do mundo). Relatos, mitos, poesia, memória, saberes tradicionais e imaginários sociais constituem o coração da complexidade da qual o sistema educativo sempre desconfiou.

Somos cidadãos do mundo e, ao mesmo tempo, da pequena aldeia, da cosmovisão e organização dos povos originários e da extensão e profundidade tecnológica em nossas vidas.

Somos seres donos de uma existência corporal e inventamos formas de não perder os coletivos, as redes de ajuda mútua, a transferência de palavras, bens, saberes, tecnologias e inovações.

Temos que estar à altura desses desafios. Os edifícios onde se aprende devem mudar, tornar- se mágicos, extra-cotidianos, integrando praças e ruas, porque o espaço público é de todos e todas e significa: bem comum, território de encontros, aprendizagens, saúde, escola de democracia, meio ambiente, comunicação, história e norma legal.

O espaço público ao qual pertence o sistema de escolas é um lugar para aparecer diante dos outros e não para desaparecer, ser ignorado. Um lugar para fazer e não ter. Um espaço para revelar-se (dar- se a conhecer) e rebelar-se (dizer que não, lutar e organizar protestos para ampliar nossos direitos).

Recordemos, a favor da potência do nosso corpo integral, que existe um campo de sensações (ligado à experiência humana com as coisas e os elementos). Existe um campo de percepções (atravessado pela cultura e pela memória da sensação), um enorme campo de afetos e emoções, um campo de imagens internas de amor e autoestima, e um último campo: o conceito. Todas essas dimensões trabalham para variadas relações sociais e pessoais que nos constituem e são vinculadas com o amor, a criação, a imaginação, e não são só antecedentes à construção do conceito.

Sempre trabalhei com crianças de todas as idades, mas em especial os menores, porque foram peixes nas barrigas de suas mães, criaram-se terrestres (não sem dor), mas sempre quiseram ser pássaros. Porque vêm da espécie com o mandato da ação e do movimento, e isso deveria ser muito sério para nós. Porque o jogo é a aprendizagem interna dos métodos para a transformação criativa (como disse Gadamer), porque vivem no presente e não no cronos da sequência. Porque não conhecem as separações corpo e alma, sujeito e objeto, forma e conteúdo, teoria e prática e, em consequência, a forma, o relato e a ação do jogo nos enchem de sentido. Não educamos as pessoas de amanhã, os adultos devem a suas infâncias o que são em luz e infortúnio e o que zeram para manter ou mudar o drama de viver.

Por isso, jovens educadores e educadoras, a grande demanda É O SENTIDO (formaconteúdo), o sentido de cada vida, a fábrica imaginária de todas as perspectivas, o plural, o distinto, o prismático, a distribuição social de bens, saberes e afetos.

Sem esquecermos de lutar pela resistência do mundo mágico e pela poesia, pela metáfora e pela metonímia, pois a literalidade significa violência e pobreza simbólica.

Amo cada um(a) de vocês e desejo que provoquem a palavra dos seus alunos e que busquem vocês mesmos(as), porque ninguém nos ensinou esta forma de ensinar. Recomendo a vocês que joguem, que inovem e tenham memória, que amem e se comprometam com aqueles que estão perdendo direitos, que convertam a arte em arte de viver e que sejam protagonistas de um dos vínculos mais sagrados da humanidade: educar-nos uns aos outros com alegria e engenhosidade, com valor e energia, com afeto permanente.

Amo e respeito vocês e estou confiante que devemos amar e mudar as práticas educativas, estar juntos e juntas em distintos lugares do planeta para seguir caminhos que se cruzam e também se bifurcam. A existência é uma viagem belíssima. Então tentemos realizar a aventura maravilhosa de interromper cadeias de vidas infelizes.

Teríamos que dar um salto
mas qualquer salto
volta a nos instalar em outra parte
na realidade teríamos que SER um salto

Roberto Juarroz

Nesta difícil primavera para a América Latina, abraço vocês, confio em vocês.

Confiem em mim. Da alma,

Chiqui

Fotografía de Chiqui González.

María de los Ángeles “Chiqui” González

Nasceu em 1948, atualmente é Ministra de Inovação e Cultura da Província de Santa Fé, na Argentina. Criadora do Tríptico das Infâncias, em Rosário, e do Tríptico da Imaginação de Santa Fé. Advogada, educadora, com extensa produção teatral como atriz, diretora e dramaturga.

*Ilustrações de Serena Labate.