Ofício docente no Brasil – um chamado ao reconhecimento social da profissão
O estudo Educobarômetro, de 2023, analisou as condições do ofício docente no Brasil, Chile, México e Espanha e expressou a necessidade de aprimorar a base material das escolas e o reconhecimento social da carreira docente.
Entre abril e maio de 2023 foi realizada sondagem com professores da educação básica no Brasil, Chile, México e Espanha. Este Educobarômetro, realizado pela Fundação SM, entrevistou 600 professores das cinco regiões brasileiras, de forma presencial. O estudo permite interpretar condições de realização do ofício docente na educação básica de escolas públicas e privadas. Destacamos, a seguir, aspectos que se referem à base material das escolas para o exercício profissional e para os aprendizados de estudantes, as repercussões de condições objetivas e subjetivas na carreira dos trabalhadores e trabalhadoras docentes e os desafios para a construção do reconhecimento social da profissão docente no Brasil.
A carreira docente
Perguntados sobre o que motivou a escolha pela carreira, 27% dos respondentes no Brasil indicaram o gosto pela docência como motivo e 25% a possibilidade de melhorar a sociedade. Quando consideramos as idades, encontramos diferenças nas motivações entre aqueles com menos de 35 anos e os com mais de 50 anos de idade. Gostar de lecionar foi motivo para 32% dos docentes com menos de 35 anos e para 20% dos docentes com mais de 50 anos. Melhorar a sociedade foi motivo para 28% dos docentes com menos de 35 anos e para 19% dos docentes com mais de 50 anos.
Ao longo das últimas três décadas, as reformas previdenciárias no Brasil resultaram em perdas de rendimentos e aumento da idade mínima para se aposentar, levando os docentes a adiarem a aposentadoria. Esse cenário pode explicar a menor motivação de professores com mais de 50 anos, possivelmente influenciada pelo confronto com a realidade educacional e a redução das expectativas de melhoria social através da escolarização. Precisamos pensar juntos, então, como manter acesa a chama da motivação, entre professores e estudantes, para que se encontre sentido de estar na escola, ensinando e aprendendo e consciente de que aquele e aquela que ensina também é aprendiz.
Diante da pergunta sobre o que seria necessário para melhorar sua situação profissional, 72% dos docentes brasileiros responderam que o salário precisaria aumentar. A segunda resposta mais recorrente teve 37% das indicações, reivindicando “melhor consideração social de nosso trabalho docente”. As respostas apontam para a centralidade do salário, que é condição objetiva de qualidade do exercício profissional associado com aspectos subjetivos relacionados com o valor que a sociedade atribuiu ao ofício de ser professor ou professora.
Recentes editoriais de jornais de grande circulação nacional reacenderam a discussão sobre a gestão em contraposição à reivindicação por mais recursos para a educação brasileira. O Plano Nacional da Educação (PNE) de 2014 previa que o investimento em educação no Brasil chegaria a 10% do PIB em 10 anos. Atualmente, apenas um pouco mais de 5% de todas as riquezas nacionais são aplicadas na educação. Estamos longe da meta e ainda mais longe dos países que mais investem em educação, segundo dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O relatório intitulado “Education at a Glance” de 2023 mostra que o Brasil investiu, em 2020, cerca de US$-PPC 3.300 (Dólar por Poder de Paridade de Compra) ao passo que a média de investimento por aluno dos países da OCDE foi de US$-PPC 11 mil.
É inegável a importância de gestão de qualidade para garantir que as prioridades sejam atendidas conforme as decisões coletivas das conferências de educação e demais espaços colegiados de debate, legislação, execução e controle das políticas e projetos educacionais. A qualidade das práticas educativas está intrinsecamente ligada à suficiência da base material das escolas, exigindo prédios bem equipados, laboratórios científicos, espaços culturais, alimentação saudável, e educadores motivados e bem remunerados, com estabilidade no emprego, autonomia e dedicados a uma única instituição.
O fazer docente
Em relação à indagação sobre dificuldades para a realização da tarefa docente e causas de estresse na docência houve respostas coincidentes. Manter a disciplina entre os estudantes e dificuldades em administrar o tempo para realizar atividades aparece como fator tanto gerador de estresse quanto dificultador do trabalho docente. Ter muito trabalho administrativo e pouco tempo para preparar aulas também é fator recorrente nas respostas.
A constatação de que dois em cada três docentes brasileiros afirmam que suas escolas não proporcionam os recursos necessários para realizar seu trabalho destaca a precariedade enfrentada na infraestrutura educacional. É possível considerar que essa lacuna se manifeste diretamente na qualidade das condições de ensino, comprometendo o desenvolvimento profissional dos docentes e o aprendizado dos estudantes.
Docentes brasileiros são, entre os quatro países participantes deste Educobarômetro, os que mais afirmam (67%) que “apesar dos problemas, eu me esforço muito e, às vezes, fico entusiasmado(a)” com o trabalho docente. No México 59% dos participantes da pesquisa concordam que esta mesma afirmação, 43% dos chilenos e 24% dos espanhois. É baixo o índice de docentes efetivamente entusiasmados (16%) no Brasil, mas é significativo o índice dos que declaram se esforçar muito diante dos problemas. São também os docentes brasileiros os que afirmam com maior frequência a disposição de mudar de profissão para algum trabalho semelhante. Entre os brasileiros o índice é de 29%, entre chilenos 19%, entre mexicanos 16% e entre espanhois é 11%.
A pesquisa preocupou-se em indagar sobre sintomas físicos e mentais relacionados com a profissão docente. Solicitou-se que as respostas desconsiderassem o período da pandemia de Covid-19. Dos respondentes brasileiros, 76% afirmaram ter tido sintomas de esgotamento físico e mental, 51% sintomas de ansiedade e depressão e 42% falta de entusiasmo, apatia ou perda de interesse.
O INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) construiu um indicador de esforço docente que considera o número de escolas onde um docente atua, o número de turnos de trabalho, o número de alunos atendidos e o número de etapas nas quais o docente leciona. Esse indicador se organiza numa escala de 1 a 6, indo do menor ao maior esforço docente. Os dados de 2022 indicam que 4,6% dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental se encontram nos níveis 5 e 6 de esforço docente. Nos anos finais do ensino fundamental são 13,8% nesses mesmos níveis. E no ensino médio, esses níveis de esforço concentram 18,6% dos docentes. Os índices expressos pelos níveis 5 e 6 indicam docentes que atendem a mais de 300 ou 400 estudantes, atuam nos três turnos, em duas ou três escolas e em duas ou três etapas de ensino.
Esse cenário expressa a necessidade de ampliação do quadro docente permanente das escolas, políticas de proteção à saúde física e mental de docentes e o imperativo de melhoria das condições de trabalho e valorização docente.
Os professores apontam que, para melhorar profissionalmente, é crucial priorizar aspectos relacionados às condições de trabalho, como melhor salário, mais reconhecimento social e equilíbrio pessoal-profissional. Os baixos salários e as precárias condições de trabalho levam professores a buscar complementações de renda, seja por meio de dupla ou tripla jornada ou atividades complementares alheias ao trabalho docente. Segundo dados do INEP, referentes ao Censo Educacional de 2021, os docentes com estabilidade profissional no Brasil somam 55% demonstrando que parcela expressiva se encontra submetida a formas de trabalho ausentes das dimensões de estabilidade e carreira.
Diante da afirmativa “a sociedade valoriza os professores”, respondentes dos quatros países assim se manifestaram: 74% dos docentes brasileiros, 30% dos chilenos, 27% dos mexicanos e 22% dos docentes espanhois discordam dessa sentença. E frente à afirmação “a administração educacional pública valoriza os professores”, discordaram na seguinte ordem: 77% dos brasileiros, 29% dos mexicanos, 24% dos espanhois e 22% dos docentes chilenos. Os dados revelam que são os docentes brasileiros, na comparação entre os países, os que mais se ressentem de valorização profissional, quer seja da gestão educacional, quer seja da sociedade de um modo geral.
Reconhecimento e identidade profissional
A disposição expressa pelos participantes brasileiros da pesquisa de mudar de profissão pode ser associada ao conjunto de fatores revelados em suas respostas. A percepção de que o trabalho realizado não é devidamente remunerado, a denúncia de que o trabalho docente é realizado em condições de insuficiência material e a enunciação de três em cada quatro docentes de que a profissão não é valorizada fazem parte desse conjunto de fatores. Estes se associam para o que se pode denominar de um mal estar docente nas escolas brasileiras.
O ânimo que move a atuação docente não é apenas uma questão de motivação pessoal, mas também depende da base material que sustenta a profissão. Esta encontra-se relacionada com a consistência das políticas educacionais que demandam financiamento, planejamento e participação dos atores envolvidos no processo educacional e melhorias nos contratos de trabalho do setor privado. O ânimo também se constitui no reconhecimento social da profissão e nos laços de solidariedade que se forjam na construção de projetos em comum nas políticas democratizantes e nos cotidianos das comunidades escolares.
Os dados da pesquisa trazem diversos elementos, a partir das respostas docentes, relacionados com os desafios de produção e de continuidade de identidades profissionais docentes. É possível apontar estações sensíveis para estas identidades profissionais que precisam ser tratadas adequadamente nas biografias docentes. A qualidade da formação inicial, a estrutura de carreira profissional que contemple a formação continuada, o reconhecimento social, a valorização da profissão e a constituição de condições dignas de aposentadoria são elementos constituintes de uma identidade profissional.
As respostas à pesquisa revelaram fragilidades significativas em cada uma dessas que chamamos de estações sensíveis da identidade profissional. Essas vozes sinalizam para um mapa de atuação que deve se desdobrar em formulação e implementação de políticas públicas capazes de superar as adversidades do fazer docente. Da mesma forma expressam a urgência da produção de redes de ação coletiva que busquem superar as dificuldades e sensibilizar a sociedade para a valorização da profissão docente no Brasil.
Ana Karina Brenner: Doutora em Educação. Professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UERJ.
Paulo Carrano: Doutor em Educação. Professor associado IV da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador Produtividade CNPq – Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF.