Os desafios da escola frente às Tecnologias Digitais 

13 maio 2024
Segundo a UNESCO, o direito à educação, cada vez mais, é sinônimo de direito à conectividade adequada (imagem: iStock).

Tecnologias digitais na escola exigem equilíbrio e reflexão. Diretrizes claras, integração pedagógica dos celulares e conscientização digital promovem uso responsável, superando distrações e aproveitando seu potencial educacional. 

Nos últimos anos, a relação entre estudantes e tecnologias digitais tem sido alvo de muitas discussões, especialmente quando se trata do ambiente escolar. Qual o cenário do acesso às tecnologias digitais? Como crianças e adolescentes estão interagindo com essas tecnologias na escola? Quais os desafios que isso apresenta e as possíveis soluções para integrar essas ferramentas de forma eficaz no ambiente educacional? Não temos aqui a intenção de esgotar as respostas sobre essas questões, porém, trazemos elementos para pensar caminhos possíveis dos usos das tecnologias digitais na escola numa perspectiva crítica e reflexiva.   

O relatório de Monitoramento Global da Educação (UNESCO, 2023) intitulado “Tecnologia na Educação: uma ferramenta a serviço de quem?” traz instigantes apontamentos para, entre outras questões, se pensar a relação, na escola, de crianças e adolescentes e as tecnologias digitais. Realizado sob os efeitos da pandemia sobre processos globais de escolarização, o relatório reporta consequências da educação online neste período específico, notadamente quanto ao acesso e aos aprendizados em tempos de prédios escolares fechados e educação online. 

Há um complexo de fatores que torna problemática a implementação das novas tecnologias digitais na escola. Podemos citar o custo elevado para a aquisição das tecnologias, notadamente para os países de baixa renda; o bem-estar das crianças e adolescentes que estão tendo seus dados expostos frente à ausência ou fragilidade de leis de privacidade de dados e, ainda; o custo ambiental das trocas de equipamentos sem preocupação em aumentar a vida útil dos que já estão em uso. Soma-se a isso, a qualificação insuficiente do corpo profissional das escolas para lidar com as inovações tecnológicas e a distração que os celulares levados pelos estudantes à escola produzem nas relações de aprendizagem quando não incorporados às práticas pedagógicas na escola. Usaremos ao longo do texto o termo celular para indicar todos os aparelhos de uso pessoal com conexão à  internet. 

O relatório denuncia a existência de interesses de mercado que atravessam os resultados de boa parte das pesquisas sobre o uso das tecnologias digitais na educação. E informa que quase 90% do conteúdo disponível em repositórios de educação superior foi criado na Europa e na América do Norte e quase a totalidade desses estão disponíveis somente em inglês. Há, portanto, uma concentração de produção de conteúdos digitais no norte global e isso afeta os usos pelos grupos com maior dificuldade para acessar recursos de toda ordem, inclusive digitais. 

O mesmo estudo mostra que a distribuição de equipamentos sem incorporação de seus usos às abordagens pedagógicas de escolarização ou utilização de formas exclusivamente remotas de ensino não melhorou os processos de aprendizagem ou ainda aumentou as lacunas deste processo. Revelação adicional, a partir de dados de 14 países, é que estar próximo de um aparelho celular é fator de distração, reforçando a percepção de que os equipamentos por si só, sem mediação pedagógica no cotidiano escolar, não produzem efeitos positivos e podem ter impactos negativos na aprendizagem e nos processos de escolarização. A falta de habilidades digitais adequadas pode dificultar o uso eficaz dessas ferramentas. E os professores se sentem despreparados para dar aulas usando tecnologias. A presença de celulares, portanto, não implica, necessária e automaticamente o uso destes para estudos, pesquisas ou criações no âmbito das práticas escolares.  

Um dos aspectos positivos das tecnologias digitais foi a possibilidade de inclusão educacional de pessoas com deficiências e moradoras de áreas isoladas em todo o mundo. Se por um lado os equipamentos de tecnologia assistiva ainda são muito caros e de difícil acesso para estudantes, notadamente em países de baixa renda, por outro, as plataformas digitais e os aparelhos estão cada vez mais incorporando elementos de acessibilidade que têm contribuído para reduzir as barreiras de acesso à educação por estes grupos populacionais.  

As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC’s) – aparelhos celulares conectados à internet, por exemplo – convivem com antigas tecnologias – rádio, TV -, todas permitindo acesso à educação para populações de difícil acesso. Mas, se por um lado o ensino online teve alcance potencial de mais de 1 bilhão de estudantes durante a pandemia de COVID-19, por outro, não conseguiu chegar a cerca de meio bilhão, em todo o mundo. Os mais pobres somam 72% dos não alcançados pelo ensino online na pandemia. Neste sentido, o “direito à educação, cada vez mais, é sinônimo de direito à conectividade adequada” (UNESCO, 2023, pág.7) mas as desigualdades de acesso são profundas e contribuem para os distanciamentos entre os extremos da desigualdade. 

O Censo Escolar (INEP, 2023) demonstra, para o caso nacional, essa dimensão da desigualdade. Os dados informam que a disponibilidade de recursos tecnológicos nas escolas de ensino médio é maior do que nas de ensino fundamental. Na rede estadual, que detém o maior número de escolas de ensino médio, 84,4% das unidades têm internet banda larga. O percentual de computadores portáteis e de tablet para alunos é de 55,4% e de 17,3%, respectivamente. Na rede privada, a oferta desses equipamentos é superior, atingindo 59,4% e 33,2%, respectivamente. Destacam-se com os maiores percentuais de escolas com internet banda larga as regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste, com 96,9%, 88,4% e 88,0%, respectivamente. O Norte do país é a região com o menor percentual de internet banda larga, 63,8% das escolas. O Sul é a região com o maior percentual de tablet para alunos, na ordem de 28% das escolas, e também é onde aparece o maior percentual de computadores portáteis para alunos, com 69,5%. 

O reconhecimento dos elementos estruturais e do contexto de utilização das tecnologias nas escolas contribui para pensar e orientar as práticas que possibilitem usos criativos e críticos para produção de mediações e aprendizados significativos no cotidiano escolar. 

Usos reflexivos e mediações com as tecnologias no cotidiano escolar 

A reflexividade desempenha papel crucial na educação dos estudantes em relação aos usos das tecnologias digitais. É o processo de pensar sobre si mesmo, suas ações, pensamentos e emoções, e como eles afetam sua vida e suas relações com os outros. Ao pensarem sobre suas ações e comportamentos, esses podem aprender a lidar com suas emoções e melhorar suas relações interpessoais. É uma habilidade importante para a produção da autonomia, para a formação de suas identidades e para a compreensão de si mesmo e do mundo ao seu redor. Quando, em especial os adolescentes, são capazes de se conhecer e compreender suas emoções, eles e elas são mais propensos a se comunicar de forma eficaz e a resolver conflitos de maneira positiva. 

A relação entre crianças e adolescentes e tecnologias digitais na escola é complexa, apresentando tanto desafios quanto oportunidades. Ao enfrentar esses desafios com estratégias eficazes e promover um uso responsável das tecnologias digitais podemos garantir que aproveitem ao máximo essas ferramentas no processo educacional. 

Este é o caso dos aparelhos celulares, fonte já referida de distração que dispersa as atenções dos estudantes na relação com os processos escolares relacionados com o aprendizado, a sociabilidade no ambiente escolar e o próprio sentido de estar na escola. A Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2024, instituiu por decreto a proibição do uso de celulares nas escolas municipais e definiu possibilidades de utilização em situações especiais, incluindo o seu uso pedagógico. A decisão é baseada em evidências do relatório da UNESCO, acima citado, bem como de relatório da OCDE sobre os resultados do teste internacional PISA. Ambos os relatórios enfatizam fatores negativos relacionados com a presença dos celulares nas escolas.  

Superar a aparente contradição entre o uso de celulares como fonte de distração e sua utilidade para as aprendizagens escolares requer uma abordagem equilibrada e consciente. As escolas precisam incorporar o uso dos celulares aos seus projetos institucionais produzindo usos pedagógicos no cotidiano escolar. Algumas medidas podem contribuir para o enfrentamento dessa tensão que atravessa os cotidianos escolares:  

  • Produzir processos de diálogo entre estudantes sobre o uso dos celulares nas escolas, suas potencialidades e consequências negativas para os aprendizados e relação com o saber; 
  • A partir do diálogo, estabelecer diretrizes de uso que definam quando e como os celulares podem ser usados tanto em sala de aula quanto nas demais dependências da escola; 
  • A partir da dialogia e da reflexividade os estudantes podem desenvolver habilidades de autorregulação. Gerenciar seu tempo e uso dos celulares através de estratégias capazes de minimizar a distração valoriza seus próprios esforços de desenvolvimento da autoconsciência; 
  • Estimular que educadores integrem o uso dos celulares nas atividades de aprendizado, ampliando interesses de estudantes na relação com o saber em suas múltiplas dimensões – culturais, corpóreas, éticas, estéticas, científicas e tecnológicas; 
  • Incentivar atividades colaborativas e lúdicas e o engajamento de estudantes através do uso dos celulares; 
  • Promover a consciência digital sobre os benefícios e desafios do uso dos celulares, bem como sobre questões relacionadas à segurança e privacidade online. Isso confere suporte para fazer escolhas bem-informadas sobre o uso de seus dispositivos e entender as consequências de suas ações online. 

Ao adotar uma abordagem equilibrada que reconheça tanto os desafios quanto as oportunidades associadas ao uso de celulares na escola, é possível superar a aparente contradição e aproveitar ao máximo o potencial desses dispositivos para os aprendizados escolares. 

No contexto em que a Inteligência Artificial nos apresenta a sua própria síntese do mundo, das informações e dos conhecimentos e algoritmos dirigem nossas atenções e interesses, o estímulo à reflexividade pode ser chave para desvendar processos ocultos que colonizam as atenções, promovem desejos e formatam consciências. Isso inclui buscar compreender as motivações e direcionamentos por trás do desenvolvimento e implementação desses dispositivos em nossos cotidianos, avaliar os benefícios e os riscos associados ao seu uso e considerar as implicações éticas e sociais envolvidas. 

Educadores de escola e responsáveis pelos estudantes são atores relevantes na promoção de diálogos para usos reflexivos das tecnologias digitais. É preciso fornecer orientação sobre questões de segurança online, estimular o pensamento crítico em relação ao conteúdo digital e incentivar o uso das tecnologias de forma produtiva, colaborativa e consciente. Isso inclui a formação de professores e proximidade com as famílias para promover o uso adequado das ferramentas digitais e o estabelecimento de diretrizes em diálogo com as comunidades escolares para seu uso na escola e a promoção de uma cultura de responsabilidade digital. 


Ana Karina Brenner: Doutora em Educação. Professora associada da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UERJ.  

Paulo Carrano: Doutor em Educação. Professor associado IV da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador Produtividade CNPq – Coordenador do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF. 

 Referências