Desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais para a leitura

20 outubro 2025
Aprender a ler é um processo que requer ensino sistemático, investimento em experiências de leitura e treinamento em múltiplas habilidades (imagem: iStock).

Um artigo anterior apresentou a base neurobiológica da aprendizagem da leitura, destacando que se trata de um processo cultural que requer preparação e esforço. Embora não nasçamos com um “kit cerebral da leitura”, a estimulação precoce por meio da literacia favorece o desenvolvimento das habilidades cognitivas essenciais à leitura. Neste novo artigo, o autor explica como promover o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais para a leitura e como promotores de leitura – pais, professores e cuidadores – podem estimular essas habilidades que favorecem o aprendizado da leitura.

Habilidades preditoras da aprendizagem da leitura

A aprendizagem da leitura não inicia no primeiro ano do ensino fundamental. Este processo exige a espacialização de estruturas que podem ser comparadas a diversos fios que, ao serem trançados, formam uma corda forte e resistente. Scarborough (2001) aponta que a compreensão da linguagem – incluindo conhecimento prévio, vocabulário (amplitude, precisão, articulação, etc), estruturas da língua (sintaxe, semântica, etc), raciocínio verbal (inferência, metáfora, etc) e conhecimentos de literacia (familiaridade com livros e textos impressos) – está associada ao reconhecimento de palavras, como consciência fonológica (sílabas, fonemas, etc), decodificação (conhecimento alfabético, correspondência fonema-grafema) e reconhecimento automático de palavras familiares (Brasil, 2019) Esses “fios” começam a se desenvolver já na educação infantil e, à medida que se entrelaçam, tornam-se processos mais automáticos, promovendo uma leitura fluente e coordenada entre reconhecimento de palavras e compreensão textual.

O relatório Developing Early Literacy (2009) apresentou uma ampla pesquisa sobre os precursores da leitura e identificou um conjunto de habilidades preditoras essenciais para a aprendizagem leitora (1). Entre elas, destacam-se o conhecimento alfabético, a consciência fonológica, a nomeação automática rápida (de letras, objetos e cores), a escrita espontânea ou do próprio nome, a memória fonológica, os conceitos sobre a escrita, o conhecimento ortográfico inicial, a linguagem oral, a prontidão para a leitura e o processamento visual.

Queiroga e Silva (2020) sintetizam que as habilidades preditoras de alfabetização abrangem o processamento auditivo e visual, a velocidade de processamento, o processamento cognitivo e a consciência fonológica. Esses processos precisam ser estimulados por meio de experiências voltadas ao ensino estratégico, mas também podem ser desenvolvidos através do uso da literacia.

As habilidades auditivas devem ser estimuladas, pois representam a porta de entrada da informação sonora. Perceber os diferentes sons produzidos por objetos durante uma contação de história desenvolve as habilidades de percepção e discriminação auditiva, que futuramente possibilitam distinguir os fonemas semelhantes, como os sons de /b/, /d/, /v/, /f/, entre outros (Queiroga; Silva, 2020).

A capacidade de observar várias informações concomitantemente – como forma, cor, posição – está relacionada às habilidades visuais. Ao ler para crianças e direcionar sua atenção aos detalhes das páginas, elas desenvolvam esse comportamento e, gradualmente, passam a observar os traços das letras, o tipo de escrita, a forma, a cor, o traçado e o tamanho. A estimulação visuo-atencional ao longo da primeira infância pode contribuir posteriormente na fluência da leitura (Maluf; Silva e Madza, 2019).

A velocidade de processamento refere-se à capacidade de processar estímulos de forma rápida, sucessiva e precisa. Já o processamento cognitivo engloba diversas habilidades como atenção, memória visual e memória auditiva. O contato com a literacia favorece o desenvolvimento dessas habilidades, por meio da nomeação dos objetos visualizados nas páginas, da escuta ativa, do processamento e recontagem das histórias.

Estimular a identificação das letras, seus respectivos sons e brincar com rimas presentes nas histórias, contribui significativamente para o desenvolvimento da consciência fonológica (Oliveira; Capellini, 2020).

Todas essas habilidades iniciam seu processo de desenvolvimento muito antes do ensino formal. Pais, professores e demais cuidadores podem, por meio da literacia, estimular as habilidades preditoras da leitura. Trata-se de oportunizar um ambiente privilegiado de estimulação, que funcione como scaffolding (andaime) ou suporte necessário para que as crianças avancem em sua aprendizagem (Brasil, 2020).

Neuroplasticidade e capital cultural: o cérebro leitor em ação

Desenvolver a habilidade de leitura demanda investimento em diversas habilidades que promovem modificações neurais. A cada nova experiência leitora, o cérebro passa por processo de neuroplasticidade – ou seja, adaptações estruturais e funcionais que permitem a reorganização das conexões neurais.  Quanto mais a criança lê, maior fluência ela adquire, ampliando seu repertório linguístico, cognitivo e cultural. Esse avanço favorece a abertura ao novo, ao inusitado, estimulando o “pensar fora da caixa”, ou seja, a flexibilidade cognitiva. A leitura oportuniza aos leitores a ressignificação de contextos, permitindo-lhes alçar voos inimagináveis – desde a realidade cotidiana até a articulação de informações entre obras literárias distintas.

A neuroplasticidade é, portanto, a base que sustenta a evolução do cérebro leitor (Sargiani, 2022). Após a reciclagem inicial, descrita em artigo anterior, o cérebro continua a se transformar com cada nova leitura, fortalecendo circuitos relacionados à linguagem, memória, atenção e flexibilidade cognitiva. Esse processo contínuo de adaptação é o que permite ao leitor não apenas decodificar palavras, mas também atribuir significados, fazer inferências e construir pontes entre diferentes saberes.

O professor de literatura Jean-Marie Privat enfatiza o capital cultural que os leitores constroem por meio de suas experiências com a leitura. De forma metafórica, ele compara o leitor a um são pescador: alguém que precisa permanecer em silêncio, imóvel, solitário, contemplando página após página Esse leitor-pescador pode ser atento, reflexivo, hábil ou não. Assim como a pesca exige o domínio de certas habilidades que se aprimoram com o tempo, a leitura também requer prática e desenvolvimento contínuo.

Contudo, o ato de pescar não se resume à posse dos apetrechos adequados ou ao tempo dedicado à atividade. Ele envolve também a socialização da experiência: relatar as “histórias de pescador” a amigos, vizinhos e outras pessoas do convívio. Dessa forma, o leitor não deve se limitar à leitura solitária; é desejável que compartilhe seu capital cultural, tornando-se um agente de socialização do conhecimento adquirido por meio de leitura.  

Conclusão

O avanço das neurociências tem contribuído significativamente para a compreensão das áreas cognitivas são mais acionadas no momento da leitura, permitindo comparar as diferenças entre cérebro de leitores e não leitores.  Com isso, torna-se possível entender a complexidade envolvida na adaptação de sistemas neurais que originalmente desempenhavam outras funções e que, por meio da neuroplasticidade, realizam verdadeiras “reciclagens” para possibilitar o ato de ler.

O cérebro não nasce leitor: ele é moldado pela experiência, pela literacia familiar, pelas práticas escolares e pelo investimento social em educação. Compreender os processos cognitivos e as redes neurais envolvidas na leitura é essencial para pensar estratégias eficazes de alfabetização. Discriminação visual e auditiva, consciência fonológica, memória fonológica e acesso ao léxico são pilares que precisam ser estimulados desde cedo.

Formar cérebros leitores é formar sujeitos críticos, participativos e promotores de cultura. Investir na leitura é investir em desenvolvimento humano e social. Assim, compreender o cérebro da leitura envolve não apenas circuitos neurais, mas também práticas educativas cotidianas: a organização de rotinas, o apoio da família, o manejo das emoções e a valorização do prazer em ler. Unindo ciência e prática, formamos leitores resilientes, motivados e socialmente engajados frutos da neuroplasticidade em ação e da potência transformadora do capital cultural.


Ana Lúcia Hennemann é mestre em Intervenção na Educação e Desenvolvimento. neuropsicopedagoga clínica. Ela também é especialista em alfabetização e neuroaprendizagem.

 

Notas

  1. O relatório Developing Early Literacy: Report of the National Early Literacy Panel (2009) foi elaborado pelo National Institute for Literacy dos Estados Unidos. O documento resultou de uma meta-análise abrangente de pesquisas sobre o desenvolvimento das habilidades emergentes de leitura e escrita em crianças da primeira infância (0 a 5 anos). O objetivo foi identificar quais competências iniciais — cognitivas, linguísticas e perceptuais — apresentam maior valor preditivo para o sucesso na alfabetização. As conclusões do painel forneceram bases científicas para práticas educacionais e programas de intervenção voltados à prevenção de dificuldades de leitura e escrita.

Referências

  • BRASIL (2019). Política Nacional de Alfabetização – PNA. Brasília: MEC/Sealf, 2019.
  • BRASIL (2020). Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidência – RENABE. Brasília: MEC/Sealf, 2020.
  • CAPELLINI, S. A.; GERMANO, G. D.; OLIVEIRA, S. T. (2020). Fonoaudiologia educacional: alfabetização em foco. São Paulo: Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia.
  • MALUF, M. R.; SILVA, C. C. R.; MADZA, E. (2020). Ciências Cognitivas e pesquisas translacionais em alfabetização. In: BRASIL. Relatório Nacional de Alfabetização Baseada em Evidência – RENABE. Brasília: MEC/Sealf.
  • OLIVEIRA, A. M.; CAPELLINI, S. A. (2020). Habilidades cognitivas preditoras para o desempenho em leitura e escrita. In: CAPELLINI, S. A.; GERMANO, G. D.; OLIVEIRA, S. T. Fonoaudiologia educacional: alfabetização em foco. São Paulo: Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia.
  • QUEIROGA, B. A. M.; SILVA, C. (2020). Habilidades preditoras para a aprendizagem da leitura e escrita. In: CAPELLINI, S. A.; GERMANO, G. D.; OLIVEIRA, S. T. Fonoaudiologia educacional: alfabetização em foco. São Paulo: Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, 2020.
  • SARGIANI, L. (2022). Desafios da alfabetização no Brasil. Revista Brasileira de Educação.
  • SILVA, C. A.; CAPELLINI, S. A. (2019). Discriminação auditiva e consciência fonológica. Revista Distúrbios da Comunicação, 2019.

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